América Central
Nicarágua
A Nicarágua e a volta do policial amigo
A entrada da Nicarágua, seguindo a estrada que circunda o Lago de Nicaragua, não é dos cenários mais bonitos. Muito seco, e sem grandes atrativos geológicos, não estimulou paradas para foto. Tínhamos inicialmente programado ir direto a Granada, e por lá passar duas noites. Porém, uma ilha chamada Ometepe chamou nossa atenção. Trata-se de uma ilha formada por dois vulcões anexos, bem no meio do lago. Não tinha como ser um lugar ruim de conhecer-se.
Fomos meio no escuro em direção à cidade de San Jorge, de onde partem os ferrys para Ometepe. Tínhamos pouca certeza dos horários e de como eles funcionavam em relação às reservas. Mas só o fato de irmos com o Pezão já era um programa à parte. Chegamos bem em cima da hora de saída de um dos ferrys. Muita sorte! Pagamos e entramos com o Pezão. Estacionamos em meio a uns três carros e, fechando a frota a ser transportada, um pequeno caminhão.
Estava um vento simplesmente alucinante! Confesso que poucas vezes vi coisa igual. Um vento forte e constante. A Du tirou uma das mais belas fotos da passagem pela Nicarágua, senão de toda a viagem por enquanto. A embarcação saiu do pequeno porto e, assim que passou o quebra-mar, começou a encarar as ondas de frente. Eu e a Du estávamos no terceiro andar da quase montanha-russa, em uma espécie de terraço, e nos impressionamos com a força das ondas e com as pancadas que o barco sofria. No meio desse entretenimento, lembrei do Pezão! Olhei para baixo e estava um alvoroço imenso, de uns cinco camaradas, na tarefa de, em meio a um balanço fenomenal do barco, estirar duas fitas para conter o balanço do Pezão! De fato ele balançava muito, como se estivesse em um serra na Colômbia. Realmente ele veleja! Desci correndo pra ver o que se passava e eles já tinham concluído a passagem das fitas. Após recolocar umas dela, para o balanço não arrancar o rack fora, e fixar umas cunhas nos pneus para conter o vai e vem de frente para trás, o Carro das Neves estava pronto para encarar o maremoto! Olhei em volta e todos os outros carros mexiam somente o essencial, sem sequer haver um leve rangido de suspensão. A exceção era o pequeno caminhão, que já havia saído do porto amarrado pelas fitas na parte de cima. O cenário ficou bonito, com somente o Pezão e o caminhão recebendo amarras extras, e os demais carros indo como se fossem de rolimã, só com os freios de mão puxados. Pensei: “esse cara vai ficar marrento!”.
Chegamos à ilha e ficamos boquiabertos com a visão dos vulcões. Era meio da tarde e o sol já estava um pouco baixo, iluminando bem a lateral do maior deles, o Concepción. Descemos do ferry e tratamos de iniciar o passeio com nosso pequeno caminhão pelas ruas de Ometepe. O clima era bem descontraído, coisa de cidade bem pequena, com os estudantes saindo da escola e tomando uma das pistas da estrada. Algo raro de se ver.
Fomos direto à praia de Santo Domingo, uma das pertencentes ao lado leste da ilha. Chegamos a uma pousada bem legal, com funcionários muito simpáticos e interessados. Descemos para a areia para ver de perto uma praia de um lago, algo inédito para nós, já que não fomos no Titicaca, no Peru. É realmente diferente. O lago é tão grande que não se vê a outra margem, dando a mesma impressão de vastidão de quando olha-se o mar. As ondas também acabam sendo muito similares, fincando toda a diferença na água doce. A experiência foi... nada demais! Mas foi boa! Concordamos em ficar por duas noites, para aproveitar um pouco da vida mansa e postar o diário da Costa Rica.
No dia seguinte fomos conhecer um Ojo de Agua, uma nascente que ficava a cerca de um quilômetro e meio da pousada. Para dar umas esticadas na perna, decidimos ir a pé. Na hora de sair, fiquei alguns minutos ajudando um pessoal a consertar um pneu de bicicleta furado, enquanto a Du tirava divertidas fotos de um macaco selvagem que tem por hábito visitar a recepção da pousada pra filar uns pães e umas frutas. Conseguimos sair e começar a caminhada. O vento continuava incessante. Não demorou dez minutos e começou um belo temporal. Por sorte, uma picape da pousada apareceu e nos deu uma carona até bem perto da nascente. E poucos minutos, parou a chuva. (Era a vantagem de tamanho vento.) Chegamos à nascente e nos surpreendemos com o que vimos. Totalmente diferente do que imaginávamos. Era uma piscina imensa, formada por bordas de pedra, com uma água de uma transparência fantástica. Havia cadeiras, mesas e um bar. Tudo muito simples. Um pouco acima da piscina grande, vimos que havia também outra menor com águas mais limpas e mais azuis ainda! Lamentamos não termos levado a máquina com a caixa estanque... Ficamos aproveitando as águas claras, com o recém chegado sol, e fomos embora. Combinamos de passar de novo lá no dia seguinte e tirar umas fotos debaixo d’água. Na hora de ir embora... Temporal de novo! Mais forte ainda! Corremos um pouco e ficamos esperando em uma “sombra” de uma grande árvore para ver se passava um ônibus ou outro carro da pousada. Depois de dez minutos, bingo! Outra picape da pousada! Dessa vez, fomos atrás, na caçamba, pegando chuva. Falei pra Du: “que maluquice! Já que era pra andar de carro, melhor ter vindo com o Pezão!”. E a Du: “Que isso?! Não seria tão divertido!”. Era verdade. Chegamos na pousada, demos um mergulho no lago, almoçamos e fomos terminar e postar o diário.
No dia seguinte, levantamos o acampamento e fomos embora. Nosso ferry desta vez estava agendado para meio dia e meia, então saímos no meio da manhã e fomos de volta ao Ojo de Agua. O sol forte ajudou nas fotos. Valeu conhecer aquele lugar! Chegamos no ferry e entramos com o Pezão, que deixou claro que não queria que esquecêssemos de dar o tratamento especial dele, devido ao seu avantajado porte. Tudo amarrado, partimos! O vento estava mais fraco e as ondas bem mais baixas, então o número de checadas no Pezão não precisou ser alto. Navegação tranqüila, chegamos de volta ao continente para o trajeto até Granada.
A viagem foi igualmente calma e sem grandes novidades. O cenário continuou seco. Chegamos a Granada razoavelmente cedo e, antes do pôr-do-sol, já estávamos alojados e já tínhamos visitado a igreja da praça central, que por sua vez permitia que os visitantes subissem na torre dos sinos para ver a vista e tirar fotos.
A cidade era agitada e turística, o que proporcionava uma maior variedade de bares e restaurantes. À noite, fomos a um animado bar com música ao vivo, repleto de figuras de todos os tipos, locais e gringos.
No dia seguinte, partimos para uma lagoa, chamada Laguna de Apoyo. Estava um calor infernal e um mergulho cairia muito bem. Saímos tranquilamente, dirigindo bem devagar. Passamos por uma rotatória e continuamos na estrada. Cerca de um quilômetro depois da rotatória, estávamos seguindo um caminhão, que conseguia ir mais lento que o Pezão, e uma moto apareceu na esquerda. Eram dois caras de azul, um deles sem capacete. Eles fizeram um escarcéu danado, apontando para a direita. Começaram a forçar para entrar entre o Pezão e o caminhão. No início, pensei que eles estavam no meio de uma ultrapassagem e precisavam de espaço. Somente após eles entrarem na pista, e ainda assim continuarem a apontar para a direita, percebi que eram policiais. Paramos. Recebi as autoridades com um imenso sorriso. Confesso que, depois das abordagens extremamente amistosas que recebemos das polícias do Equador, Colômbia, Panamá e Costa Rica, estávamos totalmente relaxados. Falamos um espanhol razoavelmente fluente. O figura pediu a carteira de motorista. Apresentei-a e, quando ele não quis nem ver o passaporte e demais documentos de entrada o Pezão no país, comecei a perceber que havia má intenção. Aí ele mandou (o portunhol está um pouco melhor, mas ainda não merece o título de espanhol):
“- Para doblar en rotatoria, debe-se prender la luz intermitente. (Neste momento, o sem educação enfiou a mão na alavanca da seta e ficou mexendo para cima e para baixo.)
- Sí… Sí… ¿Yo no hice? Pido disculpas.
- No. ¡Tenemos que multarlo!
- ¡Como así! ¡Solamente por eso?!
- Sí… ¡Y lo permiso para manejo quedase conozco! ¿Usted están indo para adonde?
- Honduras…
- Ih… Lo permiso quedase conozco por cuatro días.”
Aí não aguentei e dei uma estourada:
“- ¡No es justo! ¡No es una falta tan grave!
- No importa… Y usted no estaba respetando la distancia mínima do vehículo de la frente.
- ¿Que es de cuánto?...
- Quince metros.
- ¿Estas queriendo me dicer que todos los vehículos que acá trafagan prenden el intermitente en la rotatoria y andan a una distancia de quince metros?! ¡Imposible! ¡Yo voy a la delegacía hablar que esto no es justo!
- Podemos ayudar…
- ¡No quiero ayuda!”
A discussão seguiu por dez minutos. Os policiais mostraram-se bem mais insistentes do que os peruanos e não desistiam. Comecei a me empombar um pouco, o que me arrependi depois, mas o fato era que eles não conseguiam meter muito medo. Precisavam de um estágio de pelo menos trinta dias em Belford Roxo para começar a assustar um pouco... Mas não desistiam! A eficaz técnica do “no copriendo” infelizmente não pôde ser usada. Iniciamos o papo cordialmente, totalmente de guarda baixa. Não dava pra deixar de entender o que ele falava de uma hora para outra.
Depois de algumas indas e vindas atrás do carro, e pseudo-anotações, eles nos liberaram. Saímos sem dar um tostão. A parte ruim é que essas abordagens deixam seqüelas. É como se passássemos por um assalto. Ficamos alguns minutos um pouco nervosos e, mesmo depois, a viagem pelo país não retorna ao mesmo status. Quando o poder policial, que tem a obrigação de proteger, assalta, tenho a imediata sensação de que as ruas tornam-se mais inseguras.
A única parte boa é ficar imaginando a cena do ponto de vista deles: eles estão em uma rotatória e passa um carro visivelmente estrangeiro; um fala pro outro: “vamos arrancar grana do gringo! Basta ameaçar ficar com a habilitação dele!”; aí os picaretas saem correndo em uma moto, um deles sem capacete, costurando todo o trânsito até nos alcançar; nos param e ficam achacando-nos por quase quinze minutos; não conseguem nada e retornam; chegam de volta à rotatória, trinta minutos mais tarde, com alguns litros de gasolina a menos na moto e nada de novo no bolso! Combinei com a Du em voltarmos à estratégia de fingir não entender uma única palavra em espanhol na próxima vez, que certamente haveria de vir.
Chegamos à Laguna de Apoyo na hora do almoço. Águas cristalinas e sol forte. Após um belo mergulho e um excelente almoço, estávamos restaurados. Voltamos ao final da tarde e nos preparamos para a viagem do dia seguinte, que seria longa: programamos atravessar quase toda a Nicarágua, cruzar a fronteira com Honduras, e chegar à sua capital, Tegucigalpa.
Acordamos e saímos cedo. Passamos exatamente pela mesma rotatória dos picaretas do dia anterior. Obviamente, colocamos a seta! Fiz questão de olhar para os lados, mas não vi ninguém. Seguimos. Após quase uma hora de viagem, vínhamos trafegando calmamente, no mesmo cenário seco, quando avistamos uma blitz. Pronto! Vai começar! Mandaram-nos parar. Desta vez, o uniformizado corrupto estava com um radar portátil na mão que apontava sessenta e quatro quilômetros por hora. Abri a janela e tentei falar o mais enrolado possível. Acho que ninguém me entenderia: não falava nem espanhol, nem português!
“- Sí! No! Perdón! No copriendo!”
Só que o cara manteve-se impassível e falou cada vez com mais calma! Desta vez estava mais difícil, porque parece que o lugar tinha um limite de quarenta e cinco quilômetros por hora e eu provavelmente estava mesmo na casa dos sessenta. Mas até aí tudo bem, a estratégia do “no copriendo” era pra evitar que ele conseguisse pedir dinheiro na moita. A discussão seguiu até ele falar que a multa seria de mil e duzentos córdobas (sessenta dólares) e que a carteira ficaria retida! Continuando a falar em uma mistura de grego com alemão, fui dizendo que estava disposto a pagar então a multa. Perguntei onde pagava e ele informou um banco. Perguntei onde pegaria a carteira de volta e ele ficou meio relutante, acabando por dizer um tal nome de uma suposta delegacia central em Managua. Foi aí que aumentou a idéia que tínhamos de que é tudo blefe! O cara pode até multar, mas, assim como no Brasil, não deve poder apreender a carteira em uma infração não muito grave. Continuei insistindo na tese de que poderia pagar multa e ficar sem a habilitação por uns dias. A Du dirigiria. Estávamos nessa estratégia, de diminuir a importância da multa, quando ele partiu para pedir a grana!
“- La multa costa mil e doscientos para cancelar en el banco. ¿Cuánto podes cancelar acá, ochocientos?”
Muita cara de pau! Mandei na hora:
“- ¡No copriendo!”
Foi ái que o malandro simplesmente repetiu a frase letra por letra, palavra por palavra, com toda a calma do mundo:
“- La… multa… costa… mil… e… doscientos… para… cancelar… en… el… banco... ¿Cuánto… podes… cancelar… acá…, ochocientos?”
Pensei: “deu merda! E agora?”. Falar para um picareta desses que você pode pagar mil e duzentos no banco, mas não vai pagar direto para ele com desconto... Não é fácil!
Respirei fundo e mandei:
“- Nada.
- ¿Nada?
- Nada. Acá no pago nada”.
O cara deu uma enfezada e colocou minha habilitação junto com outras que ele tinha no bolso, certamente pra me assustar. Resolvi dar uma movimentada naquela situação e ir olhar a placa que ele indicara como a que definia o limite. Nisso ele já tinha voltado pra junto dos demais picaretas. Quando andei um pouco, outro membro da gangue me gritou e fez um sinal para que eu fosse lá. Joguei a mão pra cima, em um “me deixa”, e continuei caminhando. Percebi que deviam estar desistindo. Cheguei à placa indicada e não dizia nada! A minha intenção era ver se havia escrito que o limite só valeria no caso de pedestres na rodovia, como vi em várias outras e com o que eu poderia criar algum argumento, mas o fato é que era somente a placa que indicava a travessia de pedestres! Aquela com dois bonecos! Pilantras! Comecei a voltar e nisso a Du já estava fora do carro. Vi minha habilitação em sua mão. Cheguei, ouvi ao fundo um “gracias” da Du para a trupe, e entrei no carro sem olhar para ninguém. Partimos, continuando o caminho rumo Norte. Para voltar ao clima ameno, brinquei com a Du: “viu que cara de pau! A estratégia do ‘no copriendo’ não serviu de nada! Acho que esse cara leu o diário de bordo do Peru!”.
Seguimos viagem sem grandes novidades. Não fomos parados mais vezes, apesar de termos passado por algumas blitz. Chegamos à fronteira no início da tarde e corremos todos os trâmites burocráticos. A entrada do Pezão em Honduras custou mais de quarenta dólares. Para quem estava acostumado a não pagar nada, como aconteceu nos países da América do Sul, ficou um certo gosto amargo na boca. Mas, tudo bem. Vamos em frente.
Mais um país ficou pra trás! A Nicarágua foi divertida, apesar dos amigos policiais, e fomos muito bem recebidos por onde passamos. A entrada em Honduras foi agradável. Pegamos uma intermitência entre sol e chuva que proporcionou belas paisagens. Nossa intenção é ficar por poucos dias e ir direto para a Guatemala onde, aí sim, buscaremos mais aventuras!